“A minha única estratégia é falar ao povo através dos meios de comunicação…” (Enéas).
Em 1989, tão depressa quanto pronunciar “Meu nome é Enéas”, algo com o que se gasta dois segundos, um cavaleiro andante brasileiro criou o Partido da Reedificação da Ordem Nacional, PRONA, e disputou a Presidência da República. Enéas concorreu contra 21 candidatos, uma só mulher. Teve 15 segundos de exposição por vez na TV.
Sisudo, com barba preta grande e desalinhada, óculos enormes, maiores ainda na tela da TV, frases diretas e um bordão, ele conquistou 870 votos por cada minuto em que apareceu na tela.
“A distribuição do tempo aqui é semelhante à distribuição de renda no país. Pense nisso! Meu nome é Enéas!”. Dizia ele.
Ulysses Guimarães, do PMDB, com o maior tempo de exposição entre todos os candidatos – 44 vezes maior, que o tempo utilizado pelo Enéas – fez 122 votos por minuto – 7 vezes menos. Estava provado, que o tempo de TV pode ser, em uma campanha, oportunidade e em outra, ameaça, a depender do modo como se use.
Além do tempo de exposição gratuito, Enéas enfrentou os adversários nos debates durante a campanha e foi, a exemplo de todos, entrevistado. Em todas as ocasiões, o discurso encaixava a imagem inusitada e a imagem, o discurso. Enéas esteve firme na defesa coerente de uma tese ideologicamente situada na extrema direita e de crítica veemente ao “modelo carcomido e putrefato que aí está”, dizia ele. “Falo sempre contra um sistema de troca de favores, que faz com que um candidato à Presidência da República de um partido, alie-se a outro partido, que tem uma tintura ideológica diametralmente oposta”, continuou.
A cada aparição, Enéas dizia frases soltas, mas que, mesmo as mais alucinadas, faziam sentido para as pessoas. Algo do tipo:
- “Compare o seu salário com o dos políticos. Pense nisso. Meu nome é Enéas!”
- “Para o senhor que é pobre como eu fui, a democracia é uma farsa. Pense nisso. Meu nome é Enéas!”.
- “O que fazem os políticos? Conversam, conversam, passam os anos debatendo, pra quê? Pra combinarem entre eles, quem fica com quê! E o povo para que serve? Pra votar, é claro. Em quem? Neles. Pense nisso. Meu nome é Enéas!”
- “Se o senhor quer mudar tudo, mas tudo mesmo, o senhor só tem um jeito de conseguir isso. Pense e descubra sozinho…Meu nome é Enéas!”
Se em 1989, Enéas surpreendeu, nas eleições seguintes sustentou as conquistas. Em 1994, Enéas teve mais tempo na TV. 1 minuto e 17 segundos. Os especialistas adivinhadores de resultado julgaram que com tempo maior de exposição Enéas perderia o encanto e, sem saber o que fazer com tanto tempo a mais, seria enterrado nas próprias palavras. Enéas chegou em 3º, à frente do poderoso PMDB, que se apresentou com o ex-governador de São Paulo, Orestes Quércia. Enéas venceu também Leonel Brizola.
Enéas abriu a campanha de TV naquele ano com um discurso complicado, extremamente elaborado, que poderia anunciar o prognóstico correto dos adivinhadores. Sem abertura, ele sapecou: “Fala-se muito mal no Brasil. Escreve-se pior. (…). Mas, a língua é o maior patrimônio de um povo. Desrespeitá-la é desrespeitar a própria nacionalidade. Perguntaram ao Confúcio, 2 mil anos atrás, o que ele faria em primeiro lugar se tivesse que administrar um país. “Seria, evidentemente, corrigir a linguagem”, respondeu ele. Seus interlocutores ficaram surpresos. Indagavam o porquê. Foi a seguinte a resposta do mestre. Se a linguagem não for correta, o que se diz não é o que se pretende dizer e o que deve ser feito deixa de ser feito. A moral e as artes decaem. Se a moral e as artes decaem, a Justiça desbarata. Se a Justiça se desbarata, as pessoas ficam entregues ao desamparo e à confusão. Não pode, portanto, haver arbitrariedade no que se diz. E isso é o que importa acima de tudo. Meu nome é Enéas!”.
Imaginem os estragos que um texto deste faria a qualquer candidato. Com Enéas foi diferente, com uma vantagem fantástica: aquele sujeito carrancudo, de mal com a vida, que se apresentava nos programas eleitorais sem mudar o discurso, era educado, humilde e extremamente desafiador diante dos jornalistas que tentavam diminuí-lo.
Enéas, como se desenhasse um quadro, construía uma imagem completa de um político de extrema direita, de inteligência privilegiada, mas incapaz de fazer uma grosseria ou de desrespeitar a inteligência alheia com ironias. Enéas nunca foi irônico.
Ele fez a marca, que produzia votos.
Na eleição presidencial de 1998, Enéas também teve bom desempenho. Aquela foi a eleição dos altos e baixos, com Roseana Sarney bem perto de ser primeira mulher presidente, desintegrada durante o processo, e Ciro Gomes, herdeiro dos votos femininos dela, derrubado por um ato de insanidade política contra as mulheres.
Enéas com 35 segundos de TV, chegou em quarto.
Veio a eleição de 2002. Enéas desistiu de ser candidato a presidente. Disputou uma cadeira na Câmara dos Deputados por São Paulo. Sem mudar o estilo, o discurso radical e a postura nas entrevistas, ele alcançou a marca histórica ainda em vigor de 1,5 milhão de votos. O resultado fez com que o PRONA levasse para Brasília, 5 deputados federais.
Enéas adoeceu. A doença tirou-lhe a barba, definhou-lhe o semblante, afinou-lhe o discurso. Mesmo assim, na eleição de 2006, num último suspiro, Enéas foi reeleito deputado federal com um novo bordão: “com barba ou sem barba, meu nome é Enéas”. Alcançou 386.905 votos. Faleceu um ano depois, vítima de leucemia.
Se valer para a gestão de campanhas eleitorais o conceito de produtividade, Enéas foi o melhor exemplo de eficácia ou de eficiência. Fez mais votos com bem menos instrumentos facilitadores.
Enéas não estará na próxima campanha, mas há quem queira representar o papel dele na extrema direita: Jair Bolsonaro. É quando invoco Marx com o primoroso texto, 18 Brumário de Luís Bonaparte. A melhor peça histórica de análise de conjuntura. Na abertura, Marx escreve: “Hegel observa algures que todos os grandes factos e personagens da história universal aparecem como que duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa”.