“Nada certo, tudo hipótese, dúvidas, pressão, perseguição. Mal estar geral. Réquiem de Terror.”
Domingo, 23 de julho de 2023.
Os comunistas estão no governo federal, fato revelado com vaidade pelo Presidente Lula há poucos dias no Foro de São Paulo e confirmado pela presença da estrela maior da ordem, Senador Flávio Dino, na pasta da Justiça e Segurança Pública. Eles tentaram chegar lá outras vezes, uma delas – talvez a primeira – na década de 30, quando foram impedidos pelo ditador Getúlio Vargas, que os usou para “extirpar” da política, os adversários que lhe faziam sombra, sendo eles comunistas ou não. O médico Pedro Ernesto, interventor no Rio de Janeiro e depois, prefeito eleito, cidadão não comunista, foi um deles.
A história é contada com primor pelo escritor Thiago Cavaliere Mourelle, autor do livro “O Brasil a caminho do Estado Novo”, publicado em 2019. Doutor em História Política, Thiago escreveu o livro com base nas cartas que Pedro Ernesto enviou aos filhos, Yolanda e Odilon, durante o tempo em que esteve preso. As cartas foram entregues ao Thiago por uma neta de Pedro Ernesto, Helena Mossé. Na contracapa do livro está o objetivo da obra: “(…) oferecer ao leitor a experiência de tentar compreender todo o sofrimento e ansiedade de uma família que sofreu por mais de um ano com a prisão de seu pai e marido. Tensões, alegrias e tristezas perpassam as linhas das cartas(…).”
O médico Pedro Ernesto começou a lida política como aliado de Getúlio Vargas: “(…)logo estreitou laços com Vargas”, conta Thiago Cavaliere, “tornando-se amigo próximo. Após um acidente automobilístico, Pedro Ernesto salvou a vida de uma das filhas do presidente e, além disso, evitou que dona Darcy, esposa de Getúlio, tivesse uma de suas pernas amputadas – que era a orientação dos demais médicos que a atenderam”. Para colocar Getúlio Vargas na Presidência da República, Pedro Ernesto “foi um dos principais articuladores, na então Capital da República, das ações que derrubaram o presidente Washington Luís” , diz Thiago.
Diz ainda Cavaliere: “A popularidade de Pedro Ernesto era algo poucas vezes vista na história da cidade do Rio de Janeiro. Com a redemocratização, a criação da Constituinte e a posterior promulgação da Constituição de 1934, o país voltava à normalidade democrática. A lei previa eleições para outubro daquele ano, em que seriam eleitos os legislativos estaduais – incluindo os vereadores do Distrito Federal – o que levou Pedro Ernesto, segundo a mesma praxe de outros governadores, a fundar um novo partido, alinhado aos ideais autointitulados “revolucionários” que pretendiam dar continuidade aos projetos iniciados a partir de 1930″.
Nada disso, contudo, facilitou a vida para Pedro Ernesto, quando ele fez sombra sobre Getúlio, que mandou acusá-lo de comunista e deixou que ele fosse preso sem julgamento, sem culpa formada, assim como fez com vários adversários. Tudo fez Getúlio em nome do combate ao comunismo. Uma conversa fiada, confirmada quando, adiante, ele, para permanecer no poder, voltou-se contra os integralistas, força de oposição aos comunistas.
Sabe-se que dois elementos são essenciais para justificar um ditador: uma causa, que pareça em defesa da democracia e verdugos que lhes cumpram as ordens, pois os ditadores não são capazes de colocar a mão na massa. Eles não prendem, não cassam, não fazem buscas, não torturam nem matam. Mandam que alguém faça. Em havendo alguém que faça munido dos instrumentos certos, pronto, se tem um ditador.
Para dar legitimidade aos atos de arbítrio, Getúlio Vargas contou com o apoio de um tribunal de exceção, criado por ele com o título de Tribunal de Segurança Nacional. O verdugo Filinto Muller, Chefe de Polícia de Getúlio Vargas, com o respaldo do tal Tribunal fez o diabo com os adversários do ditador. Ele levou à prisão e lá manteve pelo tempo que quis, todos os que o incomodavam.
O livro relata as várias decisões de Getúlio Vargas e de seus bajuladores, para manter Pedro Ernesto preso, com o objetivo de enfraquecê-lo e obrigá-lo a renunciar ao cargo de Prefeito, que ele mantinha mesmo preso. Mas, tanto mais fizeram, mas a popularidade de Pedro Ernesto cresceu e o apoio dos vereadores e deputados a ele não arrefeceu. Getúlio Vargas, então, tirou a autonomia da Capital com uma intervenção estranha, pois mantinha no cargo o Vice-Prefeito, o padre Olímpio de Mello, seu aliado e autor do desmonte do trabalho que Pedro Ernesto realizou.
As cartas anunciam Pedro Ernesto, hora enfraquecido, hora possuído de novas energias e esperança, ocasião em que ele era transferido de um canto para o outro, uma e recebia sinais de endurecimento do ambiente com novas prisões. Thiago Cavaliere abre o capítulo “Política e Sofrimento nos primeiros meses de detenção” com uma das cartas de Pedro Ernesto ao filho Odilon: “Meu querido filho, saúde e paz de espírito. Continuo na prisão aguardando a vontade de quem pode, mas felizmente não tive nenhuma fraqueza e garanto-lhe que não terei. (…). Não quero te falar em política porque está me causando muito nojo.(…). Dá um abraço em Odila, lembranças ao Mário e família e um saudoso abraço de teu pai que muito te estima.”
Adiante, há o trecho de uma outra carta do médico, também endereçada ao filho: “Não podes imaginar o que seja uma noite em um cárcere, é de destruir todas as resistências nervosas, líquida com todas as forças que dispomos, eu tenho sido um herói e há momentos que tendo a desanimar, mas felizmente reajo, e estou vencendo”.
O Tribunal de Segurança Nacional levou mais de um ano para julgar Pedro Ernesto e o condenou mesmo diante de todas as provas e depoimentos que provaram a inocência dele. Ele foi absolvido na segunda instância, pelo Tribunal Militar e voltou à vida política, cheio de energia e vontade, acreditando que a normalidade democrática estava instaurada. Dois candidatos disputavam a Presidência, um pela situação e outro pela oposição, mas o ditador quis continuar no poder, instalou novo regime de exceção e devolveu Pedro Ernesto à prisão.
Thiago Cavaliere conta: “Depois de um ano e cinco meses preso, por igual período longe da família e do filho exilado, aguardou um julgamento que parecia que nunca seria marcado. Viu alguns de seus adversários políticos tomarem seu lugar na prefeitura e outros atuarem dominantes no cenário nacional. Finalmente solto, quando o pesadelo parecia ter terminado, mais uma vez se viu detido, agora ao lado do filho. Se antes o problema era o Estado de Guerra e o tribunal de exceção, o problema havia tomado uma dimensão ainda mais grave: a partir de 10 de novembro de 1937 havia de fato um governo ditatorial contra o qual não havia meios legais de luta. Era a morte política de Pedro Ernesto.”
O médico faleceu no dia 10 de agosto de 1942, com 57 anos de idade, vítima de um câncer – “o intenso sofrimento, tristeza e decepção sofridos cansaram o corpo e o espírito”. Em Pedro Ernesto vejo sentido numa frase construída por Machado de Assis no Quincas Borba: “Ah, meu caro Rubião, isto de política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das ideias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão…”
Prisões ilegais, torturas, censura à liberdade de expressão, às\ imprensa; órgãos de imprensa à serviço do ditador, perseguições políticas, tudo isso está no livro de Thiago Cavaliere e justifica o nojo que Ulysses Guimarães disse ter da ditadura: “Ódio e nojo”. O livro do Thiago Cavaliere Mourelle chegou-me num bom momento, quando a coisa não anda boa na política brasileira e, daqui a pouco mais de um ano, estarei com o dever de votar em alguém para ocupar a cadeira que foi de Pedro Ernesto.