Deve-se olhar a proposta de reforma eleitoral que anda por aí e a chamam “reforma política”, com a lupa da estratégia, professora que nos ensina a ler as intenções nas ações, para que se possa fazer juízo perfeito dos atributos pessoais. Faz parte da personalidade dos astutos, usar as palavras e os títulos para despistar os interlocutores daquilo que eles realmente pensam, sentem e desejam. É desse modo que se comportam, e se têm comportado ao longo do tempo, os reformadores de ocasião. Por isso, para cada campanha eleitoral, existiu uma legislação própria, como se quer agora.
O que nos é apresentado como ótimo para melhorar a representação política é, na verdade – na mais absoluta verdade, como deve ser qualquer verdade – uma tentativa de não colocar em risco os representantes eleitos até aqui. A renovação incomoda e contraria quem diz aos quatro ventos que deseja reformar. Os arquitetos da reforma se equiparam aos que projetam casas para si mesmos e não para os clientes que os contratam.
Olhem, com atenção, alguns pontos da pretendida reforma. Ficarei, por enquanto, com o “distritão”, que a semântica leva para a consideração de um distrito enorme, grandão, assim, tipo gigante, onde o voto é válido em todo o estado. Mas já não é assim? É! O que querem, então?
O sistema proporcional que desejam fazer desaparecer tem a vantagem de preservar o voto das minorias e, isso, não parece bom para quem não gosta da democracia ou não sabe exatamente o que ela quer dizer.
A democracia não é, simplesmente, a prevalência da vontade da maioria, mas o reconhecimento da existência de uma minoria que, de igual modo, paga impostos e tem o direito de ter a sua vontade respeitada. Eis a vantagem do voto proporcional: a minoria se faz representar por intermédio dos partidos. O “distritão” é o sistema em que o voto da minoria vai ao lixo.
O argumento que sustenta a tese é o do absurdo de um candidato ser eleito com menos votos que outro. À primeira e rápida leitura, isso parece óbvio e injusto. Injusto com quem? Com o candidato ou com o eleitor? Quem deve dar as cartas?
O “distritão” elege só os candidatos mais votados até o número total de cadeiras na Câmara dos Deputados, Assembleias e Câmaras Municipais, ficando os demais nas suplências. E as suplências nos parlamentos não têm voz nem voto. O sistema proporcional tem, sim, um problema grave: o tamanho das regiões de representação – o “distritão”, que a proposta de um “distritão” amplia e na palavra dos astutos, melhora a qualidade da representação.
Qual seria, então, a vontade do eleitor? Afirmo que sequer precisamos de pesquisas ou plebiscito para saber. Os costumes já anunciam faz tempo. É só ver como o eleitor tem decidido o destino do voto. Há os candidatos eleitos com votos de todas as cidades de um estado (distritão) e os que são eleitos, majoritariamente, com votos de seus redutos (distrital). O eleitor já escolheu o distrital-misto. Cabe ao legislador dar uma pequena arrumadinha nisso: redefinir os distritos no mapa, para evitar que os votos distritais sofram dura concorrência dos endinheirados ou celebridades.
Em entrevistas, a deputada federal Renata Abreu, de São Paulo e do Podemos, uma das relatoras da reforma, diz que o “distritão” seria a passagem de um modelo para o outro. Ou seja, primeiro detonam as minorias para, lá na frente, quando só Deus sabe, recuperá-las.
É nessa toada que caminha a reforma eleitoral: com as palavras sendo usadas para esconder as intenções. Quem representa o eleitor, apesar da obrigação de defender os mesmos princípios e valores daqueles aos quais representa, não age desse modo. Representa a si mesmos e a seus valores.
Ao eleitor cabe, portanto, o exercício da vigilância, da “eterna vigilância” que é o “preço da liberdade”, como alerta John Philpot Curran, um protestante irlandês liberal. A frase resume um texto mais precioso: “É destino comum do indolente ver seus direitos se tornarem presa fácil daqueles que não o são. A condição sob a qual Deus deu liberdade ao homem (ser humano) é a vigilância eterna; condição essencial que, se quebrada, terá como resultado a servidão imediata”.
Se pelo menos os que se julgam liberais observarem, com mais atenção e com disposição para agir, a reforma que o Congresso Nacional deseja fazer na legislação eleitoral, já seremos, em número, gente suficiente para evitá-la. E, lhes asseguro, o problema não está só no “distritão”. Há muito mais a evitar nos 934 artigos que o Congresso deseja transformar em lei.
Por Jackson Vasconcelos