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SINAL TROCADO

Troque-se o sinal da declaração que virá a seguir e, inclua-se parte do poema de Castro Alves, e teremos uma ideia perfeita de como anda o Brasil. 

“Todo mundo que era contra a ditadura era comunista. Todos se tornaram suspeitos, subversivos em potencial. O comunista estava na fronteira, atrás da porta, na sombra, na igreja, na escola, no cinema, no teatro, na música, no Exército, o comunista vendia pipoca, estava disfarçado em balés, óperas, podia ser seu vizinho, podia estar debaixo da sua cama, poluir o reservatório de água, dopar os bebedouros. Os comunistas tomariam o poder. Até os não comunistas eram comunistas disfarçados, foram doutrinados, sofreram lavagem cerebral.” Adiante, o autor comenta o AI-5: “Usa a ameaça à democracia como argumento para endurecer o regime, uma aberração jurídica, incongruência em que todo regime autoritário se baseia (para defender a liberdade, precisamos acabar com ela)”. Esse é um dos depoimentos do Marcelo Rubens Paiva no livro “Ainda estou aqui”. 

No país, atualmente, há gente com o adereço de agente subversivo contra a democracia, golpista, fascista e mentirosa, processada e condenada em nome da defesa da democracia. Neste contexto, vale tomar por empréstimo abusivo uma das passagens do poema Navio Negreiro de Castro Alves, para fazer referência à história do Brasil: “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura…se é verdade. Tanto horror perante os céus.”  

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“AINDA ESTOU AQUI”

Nesse tempo em que a covardia contra o deputado federal Rubens Paiva volta a ser assunto, eu decidi transcrever o que declarou o jornalista Sebastião Nery sobre ele. O artigo está no livro “Ninguém me Contou. Eu vi – De Getúlio a Dilma”. Transcrevo para ter a honra de tê-lo nesse meu espaço. Mas, antes de transcrevê-lo, afirmo que a leitura do livro de Marcelo Rubens Paiva, em especial, dos capítulos onde ele conta a prisão do pai, é difícil. Dói. Quando conheço histórias assim, reafirmo a minha convicção de existência do inferno, pois só a morte de torturadores e de seus chefes não é pena suficiente para as dores que eles causam. O céu nem precisa existir. Para mim, basta que o inferno mantenha os cruéis por toda a eternidade. 

Bem, vamos ao texto do jornalista Sebastião Nery. Ele faleceu em setembro do ano passado, com 92 anos de idade. Eu o conheci mais de perto, quando ele foi candidato a Vice-Prefeito do Rio de Janeiro na chapa encabeçada pelo Rubem Medina, em 1985. 

“Era 20 de janeiro de 1971, feriado, dia de São Sebastião, padroeiro do Rio e meu. Antes das 10 da manhã, a caminho da praia, parei o carro em frente à casa do ex-deputado do PTB paulista, cassado, Rubens Paiva, na Avenida Delfim Moreira, Leblon, Rio. Minha filha, colega da filha dele, desceu para pegar a amiga. Mandei um recado: 

  • Diga ao Rubens que não entramos porque estamos todos com roupa de praia. Quando voltarmos, passaremos aqui para dar-lhe um abraço. Ela subiu, demorou um pouco, desceu com a Malu e me perguntou: 
  • Você brigou com o tio Rubens? Ele estava no quarto, calçando o sapato, com três homens de paletó e gravata. Dei o recado e ele disse: “Foi melhor assim”. 

Fiquei calado, para não assustar as meninas. Mas vi quatro suspeitas Kombis brancas em torno da casa, com várias pessoas dentro, olhando estranhamente para nós. Quando chegamos à praia, disse à minha mulher: 

  • Estão prendendo o Rubens. Aquelas Kombis estão sem placas. 
  • Devem ser amigos ou gerentes da fazenda dele em São Paulo. 

Não fiquei tranquilo. Apressamos o banho de mar e na volta já ninguém chegava mais perto da casa cercada, com a avenida fechada. Parei mais adiante e o porteiro de um prédio próximo me contou: 

  • É a aeronáutica prendendo um cara daquela casa. 

Voltei rápido e aflito. Era preciso espalhar urgente a notícia. Mal entramos em casa, ali perto, na Marquês de São Vicente, toca o telefone: 

  • Minha filha está com vocês? 
  • Está sim. O que aconteceu? 
  • Cuidem dela. E desligou. Era Eunice, mulher do Rubens que seria presa a seguir. 

Peguei o carro, fui correndo à casa do José Aparecido, na Aires Saldanha, em Copacabana. Na véspera, havíamos jantado lá com o Rubens. Entre outros, lá estava o Bocaiúva Cunha, também cassado e sócio do Rubens numa empresa de engenharia. Na saída do jantar, o Rubens pegou um cartão (Rubens Paiva, engenheiro civil), escreveu dois números de telefone ( 223-1512 e 227-5362), me entregou (guardo até hoje): 

  • Você anda sumido, acompanho-o pela Tribuna e pelo Politika . Vamos conversar. 
  • Passe lá amanhã para um uísque. É dia de seu padroeiro. 

Eu o conhecia desde 1953. Ele, presidente do Centro Acadêmico Horácio Leme, da Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie, em São Paulo, depois vice-presidente da União Estadual dos Estudantes, e eu dirigente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia de Minas. 

Em 1962, nos elegemos, ele deputado federal por São Paulo, eu estadual pela Bahia. E nos encontrávamos nas lutas do governo Jango. Ele foi diretor do Jornal de Debates e cassado na primeira lista do golpe militar de 1964, por ter feito parte da CPI do IBAD, que denunciou inclusive o farsante Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Em 1965, Rubens assumiu a direção do Última Hora de São Paulo, onde eu vivi um ano clandestino e trabalhei escrevendo anonimamente. 

Foi uma noite desesperadora. Com Aparecido, tomando todos os cuidados, fomos à casa de Bocaiúva, na Delfim Moreira e também na de Waldir Pires, na Ruy Barbosa. Ninguém devia falar ao telefone naqueles sinistros anos do governo Médici. Mas, era preciso avisar aos amigos, sobretudo de São Paulo e Brasília, fazer um cerco antes do pior. 

Não adiantou. No dia 21, soubemos que fora levado para o notório brigadeiro Burnier, da aeronáutica, e de lá entregue ao DOI-CODI do exército, na Barão de Mesquita. 

Já no dia 23 a certeza de que tinha sido assassinado. O jornal O DIA, do Chagas Freitas, em manchete fraudada, com a foto de um carro queimado, dizia que “o carro que o transportava do comando da 3a Zona Aérea da Aeronáutica para o DOI-CODI do exército tinha sido interceptado por desconhecidos, que o teriam sequestrado”. 

Eunice Paiva, presa com uma filha e incomunicável durante quinze dias, quando saiu lutou como uma leoa. Com o líder do MDB na Câmara Oscar Pedroso Horta, denunciou ao Conselho de Defesa da Pessoa Humana, que o arquivou por ordem de seu presidente, o tal Alfredo Buzaid, que disse que Paiva estava foragido. O bravo Pedro Horta, líder do MDB, escalou os deputados Marcos Freire e Francisco Pinto para denunciarem o fato na Câmara. 

A “grande imprensa” não disse nada. Só a Tribuna da Imprensa e o nosso Politika desafiaram a censura e furaram o tumor. Desde então, todo ano, no dia 20 de janeiro, relembro o crime. Em 2012, a Globo News, em um belo trabalho da Miriam Leitão, pôs no assunto pela primeira vez na TV. 

Mas o mais completo documento sobre o assassinato de Rubens Paiva pela aeronáutica e pelo exército é o livro do jornalista Jason Tércio – Segredo de Estado – o desaparecimento de Rubens Paiva (Ed. Objetiva). Está tudo lá. 

Os histéricos apavorados que assinaram manifestos contra a “Comissão da Verdade” sabem que um dia a Hora da Verdade chegará”. 

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MANUAL PARA O BOM ELEITOR! 

Perceba que nem bem saímos da campanha eleitoral de 2024 e já há quem se movimente para as campanhas de 26. Diante disso, indico aos interessados, o livro do professor Carlo Cipolla, um sábio, falecido no ano de 2000. Ele escreveu “As leis fundamentais da estupidez humana”, onde apontou as personalidades possíveis de dois personagens, Tom e Dick. Com base na lista de Cipolla, se tem um manual para eleições. Confiram:

Se Tom empreende uma ação para obter uma vantagem e produz uma vantagem também para Dick, Tom é uma pessoa inteligente. Então, se você quer eleger alguém inteligente, busque um candidato que, ao produzir uma vantagem para ele, estará produzindo outra para você. 

Mas se Tom é um cara que, ao fazer algo que lhe dá vantagem, provocará uma perda para Dick, Tom é um bandido e, portanto, se você precisar de um bandido na política, escolha um candidato semelhante ao Tom que, ao ter a vantagem de vencer a eleição, provoque algumas perdas para você. 

Ora, mas se Tom, ao agir, perde alguma coisa, mas produz ganhos para Dick, Tom é um político vulnerável. Se você acredita que uma pessoa vulnerável pode exercer o mandato em seu nome, fique à vontade. 

Por fim, se Tom age e, ao agir, provoca perdas para Dick e para ele mesmo, aí teremos o Tom estúpido. Neste caso, Tom estará mais para eleitor do que para candidato. 

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MACRON. SIMPLESMENTE, MACRON 

Jackson Vasconcelos, 09 de dezembro de 2024

Toda vez que Emmanuel Macron é o tema, cabe lembrar, rapidamente, que ele chegou à Presidência da França impulsionado por dois elementos essenciais numa campanha eleitoral: estratégia e sorte. Para organizar a estratégia, Macron observou de perto os movimentos políticos que surgiram na Europa (Podemos na Espanha e Cinco Estrelas na Itália), analisou a campanha de Barack Obama nos Estados Unidos e usou todas essas informações na composição de uma pesquisa qualitativa com amplo arco de consultas, para identificar distritos e setores mais representativos da França dispostos a ouvir o discurso dele. Além disso, Macron percebeu que com os partidos tradicionais ele não conseguiria dar credibilidade ao papel de outsider. “Decidi não pagar nenhum tributo a um sistema político que nunca me reconheceu verdadeiramente como um dos seus”, disse Macron ao gritar o movimento En Marche!, que agregou uma multidão de eleitores por toda a França. 

Houve também a sorte. O candidato favorito, que apresentava chances reais de vitória, François Fillon, centro-direita, foi apanhado numa denúncia de nepotismo e desintegrou-se.  

No momento, o senhor Presidente da França, Emmanuel Macron, quebrou a cara. Ele, duas vezes,  desafiou o parlamento francês e deu com os burros na água. Duas vezes! A primeira aconteceu quando o partido dele foi derrotado na eleição para o Parlamento Europeu. Ele, então, dissolveu o parlamento e convocou novas eleições. Fazia pouco tempo que ele tinha vencido com folga a eleição para um segundo mandato. Deve ter acreditado que o povo não lhe faltaria. Mas, um povo que se preza é sempre soberano – tem o poder de fato e de direito. 

Na nova eleição, o partido do Senhor Presidente não conseguiu a maioria das cadeiras no parlamento. Essa qualidade ficou com a extrema-esquerda. Restou para Macron o consolo de ter a extrema-direita de Marine Le Pen, sua adversária relevante, no terceiro lugar e ele em segundo. 

Macron não aceitou o resultado com facilidade e levou meses para indicar um novo Primeiro-Ministro. Queria fugir da obrigação de entregar a função à vencedora extrema-esquerda. Procurou daqui, buscou dali e indicou Michel Barnier, representante da centro-direita, várias vezes ministro. Uma escolha, portanto, um tanto lá, um tanto cá.

Michel Barnier, contudo, durou pouco. A esquerda unida à direita, por todos os extremos, firmou uma moção de censura e obrigou Barnier a renunciar. A imprensa francesa já aponta pesquisas com o desejo da maioria dos eleitores pela renúncia do próprio Macron, que, imediatamente, foi à TV discursar para os eleitores franceses: “O mandato que vocês me deram é de cinco anos e eu o exercerei até o fim”.

Há, na França, portanto, uma crise política, mas nada que o próprio modelo político não resolva sem ti,ti,ti ou mi,mi,mi dos políticos. O Poder Judiciário? Esse nem se atreve! 

Eis a vantagem do parlamentarismo. Mas, o povo brasileiro, apesar de todos os problemas políticos que temos por aqui, foge dele como o diabo foge da cruz. Pena, não? 

Mas, não posso encerrar esse texto sem comentar um pouquinho a mais sobre o senhor Emmanuel Macron. Tenho nas minhas estantes dois bons livros sobre Macron, um deles escrito pelo próprio com o título “Emmanuel Macron Revolução – A Autobiografia de um líder” e o outro, “Macron por Macron”, uma coletânea de entrevistas feitas com ele antes da chegada dele à Presidência. 

Do meu primeiro livro – Revolução – destaco uma curta passagem quando Macron relata a experiência dele como Ministro da Economia, bem apropriado para esse momento. Diz ele: “Tive também fracassos, os quais reconheço com tristeza”. E quando detalha esses fracassos, que ele atribui às dificuldades impostas a ele pelos agentes políticos, ele declara: “Quaisquer que tenham sido os entraves encontrados em minha ação, essa iniciativa nunca foi construída “contra” e sim “para”. “O contra não existe”, dizia Malraux. Sou um homem do “para”.  

Do segundo livro, uma obra curtíssima, com 124 páginas somente, retiro a resposta de Macron a uma pergunta que cabe bem aos políticos do Brasil neste momento. A pergunta foi: 

O que deve ser combatido para mudar o sistema? 

Macron: O fatalismo e a desconfiança. Fatalismo é pensar que não existe uma alternativa dentro do sistema político, apenas sucessão. Decidimos que nosso sistema político foi confiscado pelos aparelhos que decidem por nós, que funcionam como filtro…Esse fatalismo é terrível, porque alimenta a aversão ao político, o ceticismo e o ensimesmamento. Leva às carreiras longas e ao estabelecimento de uma relação patrimonial com a vida política. Além disso, leva a aceitar, em certos períodos, a derrota elegante que preserve um aparelho político para, em seguida, ressurgir. Isso é inaceitável para quem ama seu país e as ideias…O papel da política é o de explicar, de levar uma ideologia no sentido nobre do termo, levar uma visão do país para uma comunidade, levar valores.” 

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‘ERA UMA VEZ UM SONHO’, DE J. D. Vance

Em Era uma vez um sonho, J.D. Vance conta a história de sua vida como uma criança da classe trabalhadora do “Cinturão da Ferrugem” dos Estados Unidos, onde sua família, como tantas outras, enfrentava os impactos de uma crise cultural e econômica. Ele narra a trajetória de seus avós, que migraram para essa região e encontraram na indústria uma promessa de ascensão social. Mas, à medida que o declínio econômico se instalava, o sonho de estabilidade e prosperidade foi dando lugar a uma realidade de abuso de substâncias, violência doméstica e falta de perspectivas, aprisionando famílias em um ciclo contínuo de dificuldades.

A narrativa de Vance se torna poderosa ao oferecer uma visão íntima e direta do declínio da classe trabalhadora branca nos EUA. Ele é pioneiro em mostrar essa realidade “de dentro para fora”, revelando as feridas e contradições de uma classe social que frequentemente não é compreendida. Em seu relato, ele descreve o doloroso equilíbrio entre o desejo de afastar-se do ambiente caótico e a lealdade aos laços familiares. Entre momentos de proximidade e de distanciamento, Vance busca entender as raízes do sofrimento de sua comunidade, expondo como a falta de confiança e de oportunidades se perpetua entre gerações.

Vance consegue romper esse ciclo ao se formar em direito na Universidade de Yale, mas sua ascensão traz uma reflexão ainda mais profunda: embora ele tenha alcançado o “sonho americano”, o preço dessa conquista é a divisão entre o mundo do qual ele veio e o novo ambiente onde foi inserido. A análise social de Vance não é apenas sobre a classe trabalhadora americana, mas um retrato de uma realidade compartilhada em diferentes lugares do mundo, onde sonhos podem dividir e machucar aqueles que mais precisam de esperança.

Best-seller desde 2016, Era uma vez um sonho também é lido como um guia para entender a alienação e as condições que impulsionaram movimentos políticos recentes, como a eleição de Donald Trump. Com uma honestidade comovente, J.D. Vance transforma sua história pessoal em uma crítica ao sistema, mostrando que o “sonho americano” não é alcançável para todos de maneira igual.

Esse livro é uma leitura essencial, tanto para compreender as complexidades da sociedade americana quanto para refletir sobre questões universais de classe, pertencimento e resiliência.

Quem é J.D. Vance?