10.09.2023.
Às Favas!
“Os ditadores não perguntam por quê. Perguntam, por que não?” Eu tenho essa frase anotada, sem o nome do autor. Ela traduz a relação dos agentes de um Estado com os cidadãos desse mesmo Estado.
Por que não censurar? Por que não prender? Por que não soltar? Por que não anular o que foi feito? Por que não inquirir? Por que não julgar? Por que não cobrar mais impostos? Por que não favorecer? Por que não dispensar provas? Por que não, se estão à minha disposição os instrumentos do Estado e o braço forte dele, as polícias? Portanto, “Tudo posso, no Estado que me fortalece”.
O apóstolo Paulo na carta aos Filipenses tranquilizou os fiéis sobre as dificuldades dele para obter o necessário para o próprio sustento. Paulo agradeceu aos fiéis pela preocupação e afirmou: “Tudo posso naquele que me fortalece”, disse ele referindo-se a Jesus Cristo. Substitua-se Cristo pelo Estado e Paulo pelos agentes públicos e é possível aproveitar para o mal, a frase feita para o bem. Afinal, estamos em tempos de ter, para tudo, um bem e um mal, como valores relativos: a depender de quem esteja ao lado do bem, em lado mau ele será transformado.
Para que assim seja, é preciso que se mande a democracia às favas, como sugeriu o coronel Jarbas Passarinho ao usurpador Marechal Costa e Silva, no momento em que se decidiu a edição do AI-5. Passarinho depois foi Senador da República pelo Pará. Eis o discurso:
“Quero me referir às vezes que ouvi de Vossa Excelência, Presidente, não só coletivamente como individualmente em despachos, palavras marcadas por absoluta sinceridade; quando V.Exa não estava sendo menos sincero do que agora, neste instante ou quando V.Exa., inclusive, aqui mesmo nesse palácio no dia do seu aniversário, chamou a atenção para o peso da ditadura sobre os ombros dos homens, mesmo que fosse um triunvirato ou fosse um colegiado(…). Eu seria menos cauteloso do que o próprio Ministro das Relações Exteriores, quando disse que não sabe se o que restará caracterizaria a nossa ordem jurídica como não sendo ditatorial. Eu admitiria que ela é ditatorial. Mas, às favas, neste momento, senhor presidente, com todos os escrúpulos de consciência, pois, tudo aquilo que, fundamental é em condições normais, passa a ser secundário em condições anormais”, e etc. No entanto, os ilustres verdugos estavam com o poder de decidir o que era normal ou anormal, secundário ou principal. Sendo assim, por que não o AI-5?
Na raiz estava o apelo do deputado federal, eleito pela Guanabara, Márcio Moreira Alves, para o boicote ao desfile do Dia da Independência. Os verdugos pediram autorização à Câmara dos Deputados para processar o parlamentar e isso lhes foi negado. Então, por que não fechar o Congresso, cassar mandatos, torturar, matar, esfolar, prender?
O DIA DA INDEPENDÊNCIA NEM SEMPRE TEM SIDO CALMO. Há dois anos, em 2021, os palanques balançaram, o Presidente da República desafiou o Presidente do Supremo Tribunal Federal, um ex-presidente apartou a briga.
Mas, em tudo existe sempre um lado ruim e um lado bom e nós brasileiros temos a magnífica arte de fazer da tragédia alguma comédia. No dia 18 de maio de 2007 – 39 anos após o discurso do Senador Jarbas Passarinho – os geniais Bibi Ferreira, Juca de Oliveira e Jô Soares, colocaram um outro senador no palco do Teatro Raul Cortez, em São Paulo, com a peça, “Às favas com os escrúpulos”. É a história de uma professora apaixonada pelo marido, um senador, com quem está casada há mais de 50 anos e descobre que é traída há muito tempo por ele. Bibi fez o papel da esposa e traduziu a personagem numa frase: “O meu papel é o do povo, sob todos os pontos de vista, emocionais e políticos. Sou traída em todos os sentidos”.
Não quero encerrar sem indicar a quem me lê a magnífica entrevista que Bibi Ferreira deu ao Jô Soares sobre a peça. Está no Youtube: Atriz Bibi Ferreira volta aos palcos. É para aplaudir de pé!